sábado, 8 de junho de 2013

No Aeroporto
Carlos Drummond de Andrade
Viajou  meu  amigo  Pedro.  Fui  levá‐lo  ao  Galeão,  onde
esperamos três horas o seu quadrimotor. Durante esse tempo, não
faltou assunto para nos entretermos, embora não falássemos da vã
e  numerosa  matéria  atual.  Sempre  tivemos  muito  assunto,  e  não
deixamos de explorá‐lo a fundo.
Embora Pedro seja extremamente parco de palavras, e, a
bem  dizer,  não  se  digne  de  pronunciar  nenhuma.  Quando  muito,
emite sílabas; o mais é conversa de gestos e expressões pelos quais
se faz entender admiravelmente. É o seu sistema.
Passou  dois  meses  e  meio  em  nossa  casa,  e  foi  hóspede
ameno. Sorria para os moradores, com ou sem motivo plausível.
Era  a  sua  arma,  não  direi  secreta,  porque  ostensiva.  A
vista  da  pessoa  humana  lhe  dá  prazer.  Seu  sorriso  foi  logo
considerado  sorriso  especial,  revelador  de  suas  boas  intenções
para  com  o  mundo  ocidental  e  oriental,  e  em  particular  o  nosso
trecho de rua. Fornecedores, vizinhos e desconhecidos, gratificados
com esse sorriso (encantador, apesar da falta de dentes), abonam a
classificação.
Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho;
tinha  horários  especiais,  comidas  especiais,  roupas  especiais,
sabonetes especiais, criados especiais. Mas sua simples presença e
seu sorriso compensariam providências e privilégios maiores.
Recebia  tudo  com  naturalidade,  sabendo‐se  merecedor
das  distinções,  e  ninguém  se  lembraria  de  achá‐lo  egoísta  ou
importuno.
Suas  horas  de  sono  ‐  e  lhe  apraz  dormir  não  só  à  noite
como  principalmente  de  dia  ‐  eram  respeitadas  como  ritos
sagrados, a ponto de não ousarmos erguer a voz para não acordá‐
lo. Acordaria sorrindo, como de costume, e não se zangaria com a
gente, porém nós mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de
seus  sonhos. Assim, por conta de Pedro, deixamos de  ouvir muito
concerto  para  violino  e  orquestra,  de  Bach,  mas  também  nossos
olhos  e  ouvidos  se  forraram  à  tortura  da  tevê.  Andando  na  ponta
dos pés, ou descalços, levamos tropeções no escuro, mas sendo por
amor de Pedro não tinha importância.
Objetos que visse em nossa mão, requisitava‐os. Gosta de
óculos  alheio  (e  não  os  usa),  relógios  de  pulso,  copos,  xícaras  e
vidros em geral, artigos de escritório, botões simples ou de punho.
Não  é  colecionador;  gosta  das  coisas  para  pegá‐las,
mirálas e (é seu costume ou sua mania, que se há de fazer) pôr‐las
na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume, porém
duvido  que  mantenha  este  juízo  diante  de  Pedro,  de  seu  sorriso
sem malícia e de suas pupilas azuis ‐ porque me esquecia de dizer
que tem olhos azuis, cor que afasta qualquer suspeita
ou acusação apPoderia  acusá‐lo  de  incontinência,  porque  não  sabia
distinguir  entre  os  cômodos,  e  o  que  lhe  ocorria  fazer,  fazia  em
qualquer parte? Zangar‐me com ele porque destruiu a lâmpada do
escritório?  Não.  Jamais  me  voltei  para  Pedro  que  ele  não  me
sorrisse;  tivesse  eu  um  impulso  de  irritação,  e  me  sentiria
desarmado com a sua azul maneira de olhar‐me. Eu sabia que essas
coisas  eram  indiferentes  à  nossa  amizade  –  e,  até,  que  a  nossa
amizade  lhe  conferia  caráter  necessário  de  prova;  ou  gratuito, de
poesia e jogo.
Viajou meu amigo Pedro. Ficou refletindo na falta que faz
um amigo de um ano de idade a seu companheiro já vivido e puído.
De repente o aeroporto ficou vazio.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Cadeira de balanço ressada, sobre a razão íntima de seus atos



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